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Síndrome de patrão: a doença da classe trabalhadora

A identificação com aquele que explora sua força de trabalho, muito mais do que com os seus próprios colegas de trabalho, pode ser explicada pela relação estabelecida entre o trabalho e o consumo na sociedade contemporânea.

por Maria Cecília Máximo Teodoro

Pensar em uma homogeneidade transcendental de valores e sentimentos que predomine em quaisquer circunstâncias, temporalidades e lugares, é algo irreal, pois as construções subjetivas, como visto, estão inexoravelmente sujeitas aos contingenciamentos históricos, filosóficos, políticos e individuais dos protagonistas de seus tempos.

De forma que tudo muda, inclusive os mecanismos de dominação, de controle, de sujeição e de extração e, como não poderia ser diferente, os atos de produção de subjetividades.

Já dizia Heráclito que mesmo aquele que entra no rio novamente não encontra as mesmas águas, pois o próprio ser já terá se modificado. “Assim, tudo é regido pela dialética, a tensão e o revezamento dos opostos. Portanto, o real é sempre fruto da mudança, ou seja, do combate entre os contrários”.

Talvez esta seja uma grande questão a se abordar nas relações de trabalho dos tempos atuais, o perecimento do “combate entre os contrários”. Os trabalhadores parecem padecer de uma doença contemporânea, que elimina os opostos, colocando-os a favor do mecanismo que lhes oprime, numa Síndrome de Patrão.

A Síndrome de Patrão é uma analogia à Síndrome de Estocolmo, assim batizada pelo criminólogo e psicólogo Nils Bejerot para explicar os vínculos identificatórios e transferenciais que se desenvolvem nas relações torturador-vítima, algoz-padecente. Tais vínculos são de grande intensidade e potencializados por uma situação limite – normalmente de necessidade ou abuso – sendo que os torturadores/algozes aproveitam para “seduzirem” as vítimas.

As conclusões foram tiradas de estudos realizados após um assalto, no dia 23 de agosto de 1973, ao banco Kredibanken, em Norrmalmstorg, Estocolmo, na Suécia. Quatro pessoas foram mantidas reféns durante seis dias e, curiosamente, ao tentar libertá-los, os policiais depararam-se com as vítimas usando seus próprios corpos como escudos para proteger os criminosos.

A esse estado psíquico atribuído à vítima, que após certo período de intimidação acaba se apaixonando e se identificando pelo seu algoz, recebeu o nome de Síndrome de Estolcomo. E Síndrome de Patrão é o nome dado ao fenômeno nas relações de emprego, a fim de demonstrar-se a identificação do trabalhador com seu patrão, em detrimento do sentimento de identificação com seus próprios pares.

A identificação com aquele que explora sua força de trabalho, muito mais do que com os seus próprios colegas de trabalho – embora com estes últimos exista a identidade real de situações de vida-, pode ser explicada pela relação estabelecida entre o trabalho e o consumo na sociedade contemporânea.

Em nosso sistema, consumir foi se tornando – dentre vários aspectos – condição de cidadania, na medida em que permite à pessoa se sentir pertencente à sociedade. O consumo exerce influência direta sobre as referências de pertencimento do ser, na medida em que afeta sua identificação com determinados hábitos culturais, mas também no modo como atuam os atores políticos nos locais dos quais se sente parte ou dos quais gostaria de participar.

Na verdade, o simbolismo presente no ato de consumir faz surgir um novo sistema de castas na sociedade, na qual o consumo é gerador de signos de poder e de status. As pessoas querem parecer pertencer a classes sociais superiores e por isso são levadas a consumir cada vez mais para adquirir os bens que as farão atingir esse desiderato.

Ou seja, o consumo se apresenta como um processo de classificação e diferenciação social, em que os objetos – dotados de signos – “se ordenam como valores estatutários no seio de uma hierarquia”. Funciona assim como um instrumento eficiente de distinção da pessoa, em razão do valor simbólico que cada produto e seus significados sociais oferecem, “quer filiando-a no próprio grupo tomado como referência ideal, quer demarcando-a do respectivo grupo por referência a um grupo de estatuto superior”.

Assim, inverte-se a lógica emancipatória que o trabalho poderia gerar, de pertencimento à classe trabalhadora, transformando-o em mero instrumento de geração de renda que se reverterá em consumo. E é através do consumo que o sentimento de pertença surge para o indivíduo, já não mais ou não tanto como trabalhador, mas sim como consumidor.

No trabalho, a falta de identificação do empregado com seus próprios pares alimenta a síndrome, pois a solidariedade de outrora deu lugar à competitividade de hoje, que tende a eliminar qualquer forma de compaixão e tem a guerra como norma, pela qual “a todo custo, deve-se vencer o outro, esmagando-o, para tomar o seu lugar”.

Milton Santos diz que a competitividade, o consumo e a confusão dos espíritos constituem baluarte do presente estado das coisas. Enquanto a competitividade passa a comandar as formas de ação, o consumo passa a comandar as formas de inação. Já a confusão dos espíritos obstaculiza a compreensão de mundo, de lugar, de país, de sociedade, da pessoa e de si mesma.

A concorrência no trabalho é, ao mesmo tempo, o pai e o filho dileto da Síndrome de Patrão. É pai na medida em que faz emergir trabalhadores que não se identificam com seus pares, enxergando neles um perigo iminente de tomar o seu trabalho e se ver relegado à sua própria necessidade, órfãos. É filho dileto porque decorre do que Vincent de Gaulejac chama de demanda por sucesso, fazendo com que o trabalhador se objetifique. Fundamentando-se “num desejo inconsciente de onipotência, que alimenta o seu próprio narcisismo”, o trabalhador e seu trabalho, mais do que nunca comparados à mercadoria, devem se apresentar em condições impecáveis, mostrando-se atraentes e vendáveis, a fim de encorajar o patrão a gastar seu dinheiro comprando a sua mão-de-obra.

Não conseguindo mais identificar-se com seus pares e tomado por uma ilusão de que o desejo é apenas seu, o trabalhador é conduzido pelo intento de consumir e se tornar patrão, tomado pelo temor do fracasso, que nada mais é que o receio de perder o amor do objeto com o qual se identifica – o seu patrão -, e pelo medo de não sair-se bem aos olhos dele.

O consumo se apresenta como fio condutor desse processo do trabalhador de desindentificação e despertencimento à sua classe, e do apagamento da oposição entre capital e trabalho. O objeto do consumo funciona como templo de felicidade hábil a posicionar as pessoas socialmente, diante dos signos que emana. Essa lógica se imiscua no trabalho porque faz com que o trabalhador aja como se “estivesse” empregado, mas não como se “fosse” empregado, ou desejando que assim não permaneça por muito tempo.

Segundo Honneth, a percepção social de grupo é um forte instrumento de luta e o grande diferencial para a efetivação do reconhecimento através da solidariedade. E é por meio da solidariedade – do sentimento de pertencimento ao um meio social – que as propriedades diferenciais dos seres humanos veem à tona de forma genérica, vinculativa e intersubjetiva”.

A Síndrome de Patrão termina por extirpar do íntimo do trabalhador o sentimento de pertença à sua categoria, minando a busca por melhoria de direitos, aumentando o estranhamento no trabalho e, finalmente, exaurindo a luta pelo reconhecimento de sua classe. Ela pode também levar o empregado a rescindir o contrato de trabalho por considerar mais “vantajoso” constituir sua própria empresa, passando assim a ser o “patrão” – se pejotizando-, quando na realidade continua no terreno da necessidade e trabalhando por conta alheia, sob dependência.

Neste contexto, a doença sindrômica apresenta-se fortalecida, pois é um desejo latente do próprio trabalhador querer exibir a condição de empresário ou pessoa jurídica, tendo em vista o aspecto da capitis diminutio que, culturalmente, atribuiu-se ao termo “empregado”.

O sintoma imediato da Síndrome de Patrão é fazer com que os trabalhadores se identifiquem muito mais com o seu empregador do que com seus pares, negando a contradição capital/trabalho. Por um lado, identifica-se fortemente com o interesse da empresa, interiorizando a lógica do patrão – seu algoz -, cujas normas e valores são afinados com o capital. Por outro lado, parece introjetar dócil e pacificamente sua condição salarial de imprevisibilidade, submetendo-se ao risco de uma baixa qualificação, de ser dispensado e à pressão para se trabalhar cada vez mais, acabando por naturalizar uma competição que mais se assemelha à guerra.

Como toda síndrome, esta gera efeitos nocivos. O primeiro consiste no esvaziamento do Direito do Trabalho, pois quando os trabalhadores não se reconhecem como membros da classe trabalhadora, perdem o sentimento de pertencimento, em nome de um sonho falacioso de ser “patrão” e ganhar mais dinheiro, status e poder, o que retira a eficácia das normas e enfraquece este ramo especializado. O segundo efeito consiste em o próprio trabalhador se voltar contra o Direito do Trabalho, já que, afinal, através de uma visão individualista, egoísta, narcisista e objetificada, ele observa tão somente o que é bom para si a curto prazo e de maneira imediata, sem se perceber como membro de uma classe, cuja luta pressupõe reconhecimento entre pares e consciência de que estão em lado oposto ao do capital.

Importante notar como a Síndrome de Patrão, sutilmente, reverbera-se pela tomada da subjetividade do trabalhador pelo capital. O trabalhador, ao “vestir a camisa da empresa” e absorver o lema da school of life, é levado a “fazer o que se ama e amar o que se faz, permitindo que o empregador passe a controlar até mesmo os seus sentimentos.

Daqui surge o ponto de convergência. Seja através da “pejotização” ou do “amar o que se faz”, o que se obtém é o total engajamento e identificação do trabalhador com a empresa, passando a trabalhar na defesa não dos interesses do seu grupo, mas dos interesses do patrão, obscurecendo a contradição outrora muito mais visível entre o capital e trabalho.

Por isso é preciso buscar no reconhecimento recíproco, no empoderamento do sentimento de solidariedade e de pertencimento ao grupo – papéis da organização coletiva e da pressão popular – a cura de referida Síndrome de Patrão, a fim de se convalescer o Direito do Trabalho.

* Maria Cecília Máximo Teodoro é pós doutoranda pela UNB, Pós-Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de Castilla-La Mancha com bolsa de pesquisa da CAPES; Doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela USP- Universidade de São Paulo; Mestre em Direito do Trabalho e Graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Líder do grupo de pesquisa RED – Retrabalhando o Direito; Pesquisadora; Autora de livros e artigos; Advogada.

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